Era a sensação do momento em todo o mundo. A Lourdes, negra bonita até hoje, casada com um radialista famoso era uma das poucas que tinham aparelho de tv em casa.Preto e branco, mas para mim era fantástica. Todos os dias, lá estava eu batendo na porta para assistir televisão. E minha mãe que já trabalhava de lavadeira, decidiu aumentar a renda da família para comprar um aparelho de tv.
Foi trabalhar de cozinheira num restaurante. Já tinha experiência porque era cozinheira na casa de gente famosa, e sempre foi elogiada. Meu pai era carroceiro. Tinha apelido de “meia noite”. Faça uma ideia que horas ele chegava em casa. Um homem bom. Mas quando bebia, colocava eu e minha mãe pra fora de casa. Já dormimos em banco de praça esperando a cachaça sair da mente dele. Mas minha mãe não largava dele.
Ao contrário, cuidava até demais. Se ele arrumava um rabo de saia?? Ela ia tirar satisfação com a outra e não foi uma vez só que a via jogando a mulher no chão agarrada aos cabelos dela dizendo “vai atrás de outro que esse aqui já tem a nega dele”. E ela comprou o aparelho de televisão. Mas a renda do meu pai ainda era pouca. Então foi catar algodão. O gato era o “Tostão”, dono do caminhão. Minha mãe era muito querida e então ela ia da cabine. Não subia na bolera como os outros. Eu também fui com ela várias vezes.
E quando pagavam bem, até meu pai ia também. Os dois pareciam uma máquina. Nessa correria de trabalho, minha mãe ainda tinha tempo para lavar roupa “para fora”, como se dizia na época. Lavava e passava. Entre elas, as roupas de dona Zizi, mulher do Jairo Leme Cardoso, um importante vereador da época. Ali ela também foi cozinheira e graças à sua simpatia, conquistava o respeito e a admiração. Meu pai saía para trabalhar e ela também.
Eu estudava à tarde e pela manhã limpava a casa e preparava o almoço para o meu pai. Lembro que uma época, minha casa no Santa Cecília não tinha piso, era terra batida, e eu jogava água para abafar a poeira. Minha mãe almoçava no trabalho. Quando voltava, lavava e passava as roupas de casa, fazia faxina e nos fins de semana levava todo mundo para a igreja.
A carroça que transportava roupas limpas no cabide para deixar na casa dos fregueses, levava a gente para os fundos da igreja Nossa Senhora das Graças, onde ficava o animal amarrado a uma das árvores e esperando o fim da missa. Aos domingos eu amava a comida de casa. Minha mãe nunca deixou um aniversário meu passar em branco.
Ela mesma levantava cedo e já preparava o bolo, com recheio de goiaba e cobertura de glace com clara de ovo que ela batia com duas colheres na mão e uma tigela. Para ser sincero, minha mãe criticava muitos aqueles que já reclamavam de ser pobres e negros. Ela me ensinou que tinha muito negro malandro também. E que devia tratar todas as pessoas iguais.
Esse negócio de bulim eu nem gostava de falar para ela. “Diz quem é, que eu vou dar um corretivo nele e na mãe dele”... Pior que ia lá para o portão da escola kkk. De minha mãe negra vi muita garra, muita saúde, felicidade e respeito de todos. Sua condição de mulher negra, com dois anos de escola na vida, nascida para ser discriminada, viveu sem essa consciência.
Às vezes achava que ela não gostava dos negros. Meu pai ruivo, eu moreno e quase branco quando bebê. Então ela costumava dar mamã para mim em público e assim todos saberem que o filho saiu dela. O povo desconfiava. Ela era faceira. Escondia a idade, a ponto de ter gente achando que ela tinha filho mais velho do que ela . Esmaltes, batão, maquiagem, cuidado com os cabeços e um gingado para dançar que eu sabia bem como era.
Quintal de terra batida, uma lâmpada no topo do varal de roupas e lá estava dona Cida rezando o terço, comigo ao seu lado de joelhos antecipando a festa junina em sítios e fazendas de Andradina. E quando a depressão me atingiu na adolescência, ela não hesitou em voltar às suas origens e me levar para tomar uns passes no Centro de Umbanda da dona Eva, sem me dispensar de festas de São Cosme e Damião no Centro do Seu “Eufozino”.
Quando eu nem sabia nada da vida, ela já me levava para a benzedeira, “dona Eulália” para tirar o “mau olhado”. Mulher negra: raça e determinação, verdade e pureza, amor incondicional, espiritualidade e vitória. Minha mãe é uma negra vencedora, liberta de todo preconceito e blindada dos efeitos depressivos da discriminação. Ela sempre esteve acima dessa discussão.
Minha mãe negra sempre foi feliz.
FONTE: NOROESTE RURAL