Com crises de ansiedade, sem os aparatos de higiene necessários, em celas superlotadas e impedidas de ver suas famílias, presas temem o alastramento da doença. Marie Claire ouviu uma detenta que acaba de ir para o regime domiciliar e familiares de egressas que denunciam descasos
Texto: Marie Claire
Quando C* colocou os pés para fora do presídio feminino Tupi Paulista, no interior de São Paulo, mal podia acreditar. Era uma manhã fria e chuvosa de março deste ano, e ela saía confiante de que conseguiria reconstruir a vida.
Aos 28 anos de idade e mãe de 5 filhos, já era a segunda passagem pelo “sistema”- a primeira por roubo, a outra por tráfico de drogas. Estava prestes a entrar para o regime semiaberto após 3 anos e 8 meses reclusa quando o juiz converteu sua pena em prisão domiciliar.
A sentença segue a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em fevereiro de 2018, publicou um habeas corpus determinando que as mães de crianças com até 12 anos e gestantes em cárcere preventivo deveriam cumprir pena em prisão domiciliar. Há mais de um mês, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reforçou a decisão devido à pandemia.
Apesar dessas determinações, o poder Judiciário – a nível nacional e estadual no caso de São Paulo, onde há 33% da população carcerária do país – resiste em soltar detentos em meio à crise da Covid-19. Segundo a advogada Priscila Pamela dos Santos, presidenta da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), se não houver uma política de desencarceramento em massa, haverá um massacre pelo novo vírus, dadas as condições de insalubridade e superlotação.
A proposta do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de confinar em contêineres os presidiários contaminados pelo coronavírus foi vetada na última sexta-feira (15) pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Para Priscila, a adoção de contêineres é “cruel e desumana”. Apesar do resultado da votação, a advogada considera cedo para declarar vitória, já que abriu-se a possibilidade de se criar uma estrutura alternativa para isolar os presos infectados e ainda não se sabe qual seria.
C* conta que o medo de contrair a doença dentro do cárcere era enorme. Ela conhecia quatro casos suspeitos de presas infectadas com coronavírus, além de diversos funcionários doentes.
Dos cerca de 800 mil presos no Brasil, apenas 2.575 foram testados para Covid-19, segundo dados do Depen, portanto é certo que os números a seguir são subnotificados. Em São Paulo foram registrados 9 detentos mortos, 18 casos confirmados de contaminação e 74 suspeitas. Com relação aos funcionários em penitenciárias do estado paulista, foram 9 mortes e 117 casos confirmados, de acordo com o Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do estado de São Paulo (SIFUSPESP).
“A situação penitenciária no Brasil que já era catastrófica agora só se agrava”, diz Leonardo Biagioni de Lima, defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do estado de São Paulo. Relatórios do núcleo mostram que 70% das unidades prisionais passam por racionamento de água, 70% da população aprisionada não conta com sabonete na quantidade necessária e não há equipe mínima de saúde em nenhuma unidade nos termos do Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Privada de Liberdade, de 2014. Tampouco há vestuário suficiente e a alimentação, permanence precária – na pandemia e fora dela.
No estado de São Paulo, das cerca de 15 mil mulheres encarceradas, 326 foram soltas desde o início da pandemia. Segundo levantamento do NESC, 7.006 das detentas em São Paulo são do grupo de risco ou grávidas, puérperas e mães de crianças com até 12 anos.
No site da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, um vídeo institucional informa as medidas adotadas para combater a transmissão do vírus dentro do cárcere: funcionários com equipamentos de proteção individual, kits de higiene distribuídos para os detentos, celas lavadas periodicamente e presos recém-chegados que passam por isolamento de 14 dias.
As informações de C* vão na contramão do vídeo. Segundo ela, até a data em que saiu, nenhum produto de higiene foi adicionado à higiene das presas por causa da pandemia, tampouco foi alterada a rotina de limpeza das celas – tarefa realizada pelas próprias detentas diariamente. A parte externa é lavada uma vez por semana também pelas presas. Por mês, eram distribuídos a elas dois sabonetes em barra, dois rolos de papel higiênico, uma pasta de dente, um gilete e um pacote com oito absorventes. A água corrente era cortada durante a maior parte do dia. Para lavar as mãos tinham de reservar água em bacias.
Na cela onde C* esteve, feita para comportar dua pessoas, abrigava quatro. E havia celas com até oito. Com apenas duas camas, as presas são obrigadas a compartilhar colchões.
De acordo com Leonardo, a portaria editada pelos ministérios da Justiça e da Saúde para proteger a população carcerária da Covid-19 prevê medidas “absolutamente contraditórias” com a realidade prisional brasileira. Entre elas, isolamento de 2 metros entre as pessoas em um espaço de superlotação e colocação de cortinas no espaço da cela. “Algo que só quem não conhece o cárcere proporia, jamais poderia vir como política do Ministério da Justiça. Colocar essas pessoas em contêineres… Imagina a população idosa, com suspeita da doença, colocada em estruturas inadequadas. As medidas são absolutamente frágeis em âmbito nacional e estadual”, diz. Em São Paulo, ele acrescenta: “Ainda suspenderam as saídas temporárias, quando poderiam ser prolongadas para evitar o risco de transmissão como aconteceu na Bahia, na Paraíba e no Rio de Janeiro. O executivo paulista tem tomado medidas tímidas. Em relação à população encarcerada, não se tem notícia de melhoria no material de higiene. Os três sindicatos de agentes penitenciários de São Paulo moverão ação contra o governo estadual para que sejam tomadas medidas para prevenir a contaminação do vírus no interior do cárcere”.
O defensor público também critica a decisão do governo de São Paulo de suspender as visitas às pessoas encarceradas sem antes estabelecer um outro mecanismo de contato além do envio de cartas. “O que impera é a incomunicabilidade, o que impede inclusive o acesso à informação do que acontece dentro do cárcere no contexto de pandemia. Os defensores por ora não podem ingressar para atender, mas em maio se iniciou o atendimento virtual.”
De acordo com Amanda Rodrigues, pesquisadora do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), há relatos de familiares de presos que receberam informações de assistentes sociais alegando dificuldades nos recebimentos e envios de cartas devido ao baixo número de funcionários nos presídios, já que muitos estão sendo afastados por causa do novo coronavírus. “Quando o familiar entra em contato com a direção penitenciária ou órgãos públicos, o que informam é que não há nenhum caso de suspeita ou contaminação entre agentes públicos. Então ao que tudo indica, a subnotificação de casos não é só com relação aos presos mas também com os agentes”, acredita.
FONTE: institutomulherbrasileira